(Partilhado no Correio da Educação aquando do desaparecimento do Manuel António Pina... o Mestre que escolhi)
Querido Manuel, é tão tardia esta
carta. Tão irremediavelmente tardia que nem sei em que estrela te
pendurarás para a escutar ao meu lado enquanto a canto como a um fado.
Eu
que me habituei a ser fada de mim e a usar uma varinha de condão para
realizar os sonhos que vou sonhando (tantos deles para a escola), não
quero acreditar que um deles vai ficar perdido por aí, deambulando,
órfão de ti e da tua voz, sem destino a que chegar.
Sabias que fiz
planos para me cruzar contigo e quase consegui? Tantas perguntas eu
levava no bolso. Afinal só estivemos quase juntos porque o espaço foi o
mesmo (inverno frio na Guarda e uma biblioteca quente), mas os dias
foram dois, colados um ao outro sem se sobrepor. Adiamos na vida tanta
coisa. E depois o sal e a dor. E inventamos que as pessoas não morrem
porque a obra, a memória, essas coisas de circunstância, de limpar
lágrimas e seguir em frente. Morremos sim, porque o futuro vai ser para
sempre feito de passado. Parece que é a mesma coisa, mas é tão
diferente. Eu queria continuar a escutar a tua voz e colá-la ao que já
disseste até te dizerem que não podias dizer mais nada. Fim. Não queria
somente o que já foi, o que li e reli. Não queria apenas amanhã só
regressar a ti.
Ter
sonhos que não sei sequer quais são, sentir saudade do que não sei que
pode ser que venha a ser um dia e andar por aí a semear flores mesmo na
rocha mais dura… tu entendias este desassossego e nas tuas palavras
sempre encontrei e encontro a certeza da sanidade e urgência desta
espécie de loucura.
Não é professor quem quer. E podemos ser professores sem querer, sem saber.
Tu
foste o mestre que escolhi, sem sequer te pedir licença. Zangada com os
deuses distraídos que deixaram bruxas e monstros maus calar a tua
presença.
Mas talvez este sonho agora sem rumo tenha ficado
apenas interrompido. Seja assim um intervalo de ser em que vamos às
nossas vidas em paralelos planos, até à interseção final toda semeada de
mistério e esperança.
Quem sabe um dia encontro-te, estendo-te a mão e explico: Olá,
Manuel, chamo-me Teresa e sou professora. Também escrevo um bocadinho,
aqui e ali, mesmo quando não escrevo e uso as palavras só para tecer o
pensar.
E nem imaginas o tanto, o imenso que me fizeste crescer e caminhar até voltar a ser criança…
«Uma coisa que me põe triste
é que não exista o que não existe.
(Se é que não existe, e isto é que existe!)
Há tantas coisas bonitas que não há:
coisas que não há, gente que não há,
bichos que já houve e não há,
livros por ler, coisas por ver,
feitos desfeitos, outros feitos por fazer,
pessoas tão boas ainda por nascer
e outras que morreram há tanto tempo!
Tantas lembranças de que não me lembro,
sítios que não sei, invenções que não invento,
gente de vidro e de vento, países por achar,
paisagens, plantas, jardins de ar,
tudo o que eu nem posso imaginar
porque se o imaginasse já existia
embora num sítio onde só eu ia...»
O pássaro da cabeça, «Coisas que não há que há», de Manuel António Pina